Crédito fácil, risco alto? Mercado reage ao avanço do consignado
Nos últimos meses, o crédito consignado para trabalhadores do setor privado ganhou novo fôlego no cenário financeiro brasileiro. Com a liberação de mais de R$ 11 bilhões em pouco mais de dois meses, essa modalidade de empréstimo volta a ocupar um papel central nas estratégias de bancos e financeiras.
Embora o volume movimentado aponte para um mercado aquecido, especialistas alertam para os riscos associados à forte concentração de crédito em poucas instituições e à facilidade de acesso, o que pode contribuir para o superendividamento de trabalhadores formais.
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O que é o crédito consignado privado?
Como funciona o crédito do trabalhador
O crédito consignado é uma modalidade de empréstimo com parcelas descontadas diretamente da folha de pagamento do trabalhador. Tradicionalmente vinculado a servidores públicos e aposentados, esse modelo foi expandido para a iniciativa privada com o chamado Crédito do Trabalhador.
Essa versão do consignado permite que empregados com carteira assinada — incluindo domésticos, rurais e contratados por MEIs — tenham acesso a linhas de crédito com taxas geralmente mais baixas, devido à menor inadimplência associada à garantia de pagamento direto em folha.
Vantagens e desvantagens
Entre os principais benefícios, destacam-se:
- Juros menores em relação a outras modalidades de crédito pessoal
- Maior facilidade de aprovação
- Prazo mais longo para pagamento
Por outro lado, os riscos envolvem:
- Comprometimento automático da renda mensal
- Pouca flexibilidade para renegociação
- Maior exposição ao endividamento crônico
Números que chamam a atenção do mercado
Volume expressivo em pouco tempo
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre fevereiro e abril de 2025, o crédito consignado privado movimentou mais de R$ 11,3 bilhões. Isso representa uma aceleração inédita desde a regulamentação da modalidade para trabalhadores da iniciativa privada.
Concentração em poucas mãos
Apenas cinco instituições financeiras foram responsáveis por 73,3% do valor total concedido. O Banco do Brasil liderou em volume financeiro, com R$ 3,1 bilhões liberados, enquanto a Facta Financeira se destacou em número de contratos, ultrapassando 469 mil acordos firmados.
Essa concentração levanta preocupações quanto à competitividade do setor e ao impacto direto no custo final do crédito para os trabalhadores.
Impacto nos juros e na concorrência
Com poucas instituições dominando o mercado, as chances de práticas monopolistas aumentam. Isso pode levar à elevação das taxas de juros, minando uma das principais vantagens do crédito consignado: seu custo reduzido.
Além disso, a barreira para a entrada de novos players no setor financeiro pode reduzir a inovação e limitar as opções disponíveis ao consumidor.
O papel do eSocial e da digitalização
Ampliação do acesso ao crédito
A integração das informações trabalhistas por meio do eSocial facilitou o acesso de mais de 80 bancos e financeiras aos dados dos trabalhadores com carteira assinada. Isso permitiu a expansão da oferta de crédito consignado para um público muito mais amplo.
Entretanto, esse avanço traz consigo um efeito colateral: sem uma política efetiva de educação financeira, o aumento de ofertas pode elevar o risco de superendividamento da população.
Carteira de Trabalho Digital
A digitalização dos processos, principalmente com a Carteira de Trabalho Digital, permite que o trabalhador realize simulações, compare taxas e conclua contratações de forma remota e prática. A expectativa é que essa tecnologia aumente a transparência e reduza a dependência de intermediários.
Portabilidade: alternativa ou armadilha?
Como funciona a portabilidade
A portabilidade do crédito consignado permite que o trabalhador migre sua dívida para outra instituição financeira que ofereça condições mais vantajosas, como juros menores ou prazos maiores.
A medida visa aumentar a concorrência e permitir que o trabalhador tenha maior controle sobre suas finanças, podendo escolher as melhores ofertas disponíveis no mercado.
FGTS como garantia adicional
Outro ponto importante é a autorização para uso de até 10% do saldo do FGTS e 100% da multa rescisória como garantia para contratação. Esse mecanismo amplia o limite de crédito possível e pode reduzir o risco percebido pelas instituições, facilitando o acesso.
Porém, especialistas alertam que o uso do FGTS como garantia deve ser visto com cautela. Isso porque o trabalhador compromete um recurso importante que poderia ser utilizado em situações emergenciais, como demissão ou aquisição da casa própria.
Especialistas alertam para riscos crescentes
O risco do superendividamento
Com o avanço do crédito consignado no setor privado, cresce também o risco de superendividamento entre trabalhadores com baixa escolaridade ou pouca familiaridade com o sistema financeiro.
A psicóloga financeira Lúcia Carvalho destaca que “a facilidade de contratação e o acesso digital contribuem para decisões impulsivas, especialmente em momentos de crise financeira”.
A importância da educação financeira
Em um cenário de oferta agressiva de crédito, a educação financeira torna-se crucial. Campanhas de conscientização, atendimento especializado e programas de orientação podem ajudar a reduzir os riscos associados ao uso excessivo do crédito.
Sem esse tipo de suporte, trabalhadores podem comprometer boa parte de sua renda mensal com parcelas de empréstimos, criando um ciclo difícil de quebrar.
O que os bancos estão fazendo?
Estratégias comerciais agressivas
Com a expansão do mercado, bancos e financeiras têm adotado estratégias mais agressivas de marketing digital, usando dados do eSocial para enviar ofertas personalizadas de crédito.
Algumas instituições estão até utilizando robôs de atendimento via WhatsApp e aplicativos móveis para realizar propostas automatizadas, facilitando ainda mais a contratação — o que também levanta preocupações éticas e de proteção de dados.
Iniciativas de autorregulação
Em resposta às críticas, algumas entidades do setor financeiro começaram a desenvolver códigos de conduta e programas de autorregulação para garantir mais segurança e transparência no processo de oferta e contratação de crédito consignado.
No entanto, analistas apontam que apenas uma regulamentação governamental efetiva, com fiscalização e penalidades claras, pode garantir um ambiente realmente seguro e competitivo para o consumidor.
O futuro do crédito consignado privado
Crescimento contínuo, mas com desafios
A tendência é que o crédito consignado no setor privado continue crescendo nos próximos meses, impulsionado pela demanda reprimida e pelo avanço tecnológico. No entanto, os desafios estruturais — como concentração de mercado e falta de educação financeira — precisam ser enfrentados com urgência.
Sem medidas corretivas, o que hoje parece uma solução de crédito acessível pode se transformar em um novo foco de instabilidade econômica e social.
Ações necessárias
Entre as medidas sugeridas por especialistas e entidades do setor, destacam-se:
- Regulamentação mais clara da atuação das financeiras no consignado privado
- Fortalecimento da fiscalização sobre taxas abusivas
- Incentivo à portabilidade com mecanismos mais simplificados
- Inclusão de educação financeira nos canais de contratação
- Proteção dos dados dos trabalhadores nas plataformas digitais
O avanço do crédito consignado privado no Brasil é um fenômeno que não pode ser ignorado. Com um volume bilionário movimentado em poucos meses, essa modalidade se consolidou como uma das principais fontes de acesso ao crédito para trabalhadores com carteira assinada.
No entanto, a forte concentração de mercado, os riscos associados à facilidade de contratação e a ausência de uma política robusta de educação financeira exigem atenção redobrada de governos, reguladores e da própria sociedade.
A tecnologia pode — e deve — ser uma aliada para melhorar a transparência e a competitividade do setor. Mas, sem regras claras e fiscalização efetiva, o que hoje é uma oportunidade de crédito pode se tornar uma armadilha financeira para milhões de brasileiros.