Tokenização Imobiliária avança no Brasil apesar de falta de regulação e ganha força com o Drex
A digitalização do setor imobiliário por meio da tecnologia blockchain está em pleno crescimento no Brasil. A prática de tokenização de imóveis — que transforma ativos físicos em representações digitais negociáveis — ganha cada vez mais espaço, mesmo diante de lacunas regulatórias que ainda colocam em dúvida a validade jurídica de parte das operações.
De acordo com estimativas da consultoria Deloitte, US$ 4 trilhões em imóveis devem ser tokenizados até 2035 no mercado global, ante os US$ 300 bilhões estimados para 2024. No Brasil, o desenvolvimento da tokenização imobiliária avança com apoio de inovações como o Drex, a moeda digital do Banco Central, e de plataformas privadas que buscam adaptar modelos jurídicos já existentes para viabilizar os negócios.
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O que é tokenização de imóveis?
A essência da transformação digital no setor imobiliário
Tokenizar um imóvel significa dividir seu valor em partes digitais (tokens) registradas em uma blockchain, rede descentralizada e imutável. Esses tokens podem representar diferentes formas de direito sobre o imóvel, como:
- Direito de uso;
- Participação nos lucros (aluguéis ou venda futura);
- Potencial direito de propriedade, desde que validado posteriormente em cartório.
Token não é sinônimo de escritura
Um ponto crucial destacado por advogados especializados é que o token não substitui o registro de propriedade. O que se adquire, em regra, é um direito econômico ou contratual, que precisa passar pelo crivo legal caso haja intenção de converter-se em propriedade plena.
Crescimento mesmo sem regulação clara
Brechas jurídicas e modelos adaptados
Na ausência de uma regulamentação específica para tokens imobiliários, empresas têm se apoiado em modelos jurídicos já existentes, como contratos de cessão de direitos, consórcios e até mesmo na Lei de Multipropriedade (Lei nº 13.777/2018), que permite a divisão de uso do imóvel por frações de tempo.
Para Yuri Nabeshima, sócio do Demarest Advogados e presidente da Comissão de Inovação e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim), existem dois tipos de tokenização:
- Stricto sensu: quando o token dá direito direto de propriedade (o que ainda não é legalmente possível).
- Lato sensu: quando o token representa direitos vinculados ao imóvel, que podem futuramente ser convertidos em propriedade formal.
Drex: o projeto do Banco Central que pode mudar tudo
A segunda fase do projeto piloto do Drex — a moeda digital oficial do Banco Central — inclui 13 casos de uso, sendo um deles voltado à tokenização de imóveis. Entre os participantes estão:
- Banco do Brasil;
- Caixa Econômica Federal;
- Elo;
- SFCoop (consórcio de cooperativas como Sicredi, Sicoob e Unicred);
- ONR (Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico).
A promessa da liquidação instantânea
No ambiente do Drex, tanto o dinheiro quanto a propriedade estão tokenizados, o que permite a liquidação simultânea (entrega versus pagamento — Delivery versus Payment, ou DvP). Isso reduz riscos, elimina intermediários e melhora a eficiência operacional.
O consórcio SFCoop destacou que os primeiros testes simularam a venda de imóveis financiados por instituições diferentes, com sucesso na liquidação via Drex, mesmo sem mudanças regulatórias profundas.
Segurança jurídica ainda é desafio
Apesar dos avanços técnicos, o Registro de Imóveis ainda exige a transcrição tradicional em cartório para formalizar a propriedade. Para Erik Oioli, sócio do VBSO Advogados, essa exigência é um dos principais entraves para a plena digitalização.
Até o momento, não há projeto de lei formal sobre tokenização de imóveis, mas há movimentos em curso. O Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci), por exemplo, criou uma comissão especial em dezembro de 2024 para estudar a aplicação de blockchain no setor, em articulação com o Banco Central.
Iniciativas privadas apostam na transformação
A Netspaces, fundada por Andreas Blazoudakis, trabalha com tokenização de ativos imobiliários e é parceira da CF Inovação na criação do Index, um marketplace que visa digitalizar toda a jornada do investimento em imóveis — da planta à matrícula.
A proposta é lançar a plataforma em 2025 com 10 mil corretores e 100 incorporadoras, contando com apoio de Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central e copresidente do Index. Ele afirma que os cartórios seguirão tendo um papel central, mesmo em um ambiente digitalizado.
Ribus: tokenização voltada ao aluguel de curta temporada
Outro caso de destaque é a Ribus, fundada em 2021. A empresa utiliza blockchain para aluguel por temporada, com inspiração no modelo do Airbnb. Atualmente, a Ribus possui:
- Cerca de 2 mil imóveis ativos;
- Meta de alcançar 10 mil unidades até o fim de 2025;
- Planos de internacionalização com escritório no Texas (EUA).
Três produtos principais:
- Ribus Share: fração do direito econômico sobre um imóvel, com participação em rendimentos;
- Infraestrutura de tokenização viabilizada pela Dexcap, autorizada pela CVM;
- Estratégia de expansão pautada na Resolução CVM 88, que regulamenta o financiamento coletivo.
Tokenização via mercado de capitais: uma saída limitada
Vantagens e exclusões
Algumas empresas optam por registrar os tokens imobiliários como valores mobiliários, viabilizando operações pela Resolução CVM 88, que regula o crowdfunding de investimentos.
Entretanto, segundo Blazoudakis, essa solução não é inclusiva:
“O mercado imobiliário tradicional, com financiamento da Caixa Econômica e posse registrada em cartório, não está no ambiente de mercado de capitais, e sim no ambiente registral, cartorário e bancário tradicional.”
Expectativas para o futuro da tokenização imobiliária no Brasil
O que falta para escalar o modelo?
Para que a tokenização imobiliária se consolide de forma abrangente no Brasil, especialistas apontam os seguintes fatores como essenciais:
1. Regulação clara e específica
- Criação de projeto de lei que reconheça juridicamente tokens imobiliários como representações válidas de propriedade;
- Integração com o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI).
2. Integração entre cartórios e blockchains
- Adoção de soluções tecnológicas que preservem a função registral dos cartórios, mas em ambiente digital e imutável.
3. Participação ativa de corretores e incorporadoras
- Engajamento de agentes do mercado é fundamental para construir confiança junto aos compradores e investidores.
4. Avanço do Drex
- A moeda digital oficial pode se tornar o catalisador de toda a infraestrutura de tokenização de ativos no país.
Conclusão: um setor promissor à espera da consolidação legal
A tokenização imobiliária é uma revolução silenciosa e inevitável no mercado de bens imóveis no Brasil e no mundo. Ainda que amparada por brechas jurídicas e criatividade contratual, a prática cresce e atrai atenção de investidores, fintechs, advogados, incorporadoras e até instituições financeiras tradicionais.
Com a evolução do Drex, o fortalecimento de iniciativas como as da Netspaces, Ribus e Index, e a atuação proativa de entidades como o Cofeci, o setor parece caminhar para uma era de maior segurança jurídica e escalabilidade. Resta ao legislador e aos órgãos reguladores acompanhar esse movimento, criando normas que garantam segurança sem sufocar a inovação.